Histórias do Passarinho

Homenagem de Juvenal Azevedo ao compositor no Natal de 2008
Eu estava voltando a São Paulo para a Alcântara Machado, depois de ficar quase dois anos dirigindo a criação da filial do Rio de Janeiro. De mudança para um apartamento na Rua Bela Cintra, não me lembro mais como foi, só sei que o zelador do prédio acabou sabendo que eu trabalhava em propaganda e comentou comigo que havia outro publicitário no prédio, o “Sr. Edson”, que, honestamente, eu não sabia de quem se tratava.
Preocupado com a instalação dos chuveiros, pedi ao zelador para que me arranjasse um eletricista e voltei para o apê, trombando com os carregadores da Lusitana, em meio ao caos que se instalara.
O tempo foi passando e nada do raio do eletricista dar as caras, o que me fez descer de novo até a portaria para saber do zelador se ele havia me conseguido um, já que era quase noite. Encontrei o zelador no alto da escadaria que dava acesso ao prédio, onde ele conversava com um sujeito meio coroa, quase careca, vestido com um pulôver azul médio-quase claro, quando ele me disse:
- Este aqui é o rapaz de quem eu lhe falei - o que prontamente me levou a responder:
- Ah, o eletricista! Já estava ficando preocupado com a demora...
- Não, não, me disse o zelador. Este é seu colega, ele também é publicitário.
Desnecessário dizer que eu não sabia onde enfiar a cara e o tal “Sr. Edson”, gaguejando um pouco, explicou: “Meu nome é Edson Borges, mas todo mundo me conhece como Passarinho”. E realmente, embora eu não conhecesse o Passarinho pessoalmente, claro que já tinha ouvido falar dele.
Me desculpei, mordendo a língua pra não fazer nenhuma piada, o que só contribuiria pra aumentar o desconforto da situação e conversei rapidamente com o Passarinho, que, pra completar, morava no mesmo andar que nós, no 6º andar.
Apesar desse início de relacionamento francamente desastroso, o Passarinho tirou de letra a situação e acabamos ficando grandes amigos, mas grandes amigos mesmo, colaborando para isso o fato de minha mulher, a mulher dele e uma terceira vizinha do andar ficarem grávidas quase que ao mesmo tempo, sendo que as três, no embalo da cultura natureba dos anos setenta, pretendiam todas ter partos naturais.
Como a Lúcia, mulher do Passarinho, foi a primeira a entrar em trabalho de parto, sofreu horrores durante mais de vinte horas e teve de acabar fazendo cesariana, e três dias depois era a data prevista para o nascimento do meu filho mais velho, na véspera procuramos a médica obstetra e decidimos optar direto pela cesariana, procedimento que repetimos depois com o nascimento dos nossos outros dois filhos.
O Passarinho era daqueles caras que não parecem ser grande coisa, mas são. Com seu jeito absolutamente descompromissado de se vestir, com sua aparência de cantor de tango ou de bolero, com sua barriguinha saliente e sua baixa altura, era um cara que você olhava e não dava quase nada por ele.
Aí você engatava um papo e ficava sabendo que boa parte dos jingles de sucesso no rádio e na tevê naquele momento eram criações dele. E mais: que ele tinha sido parceiro da saudosa e genial Dolores Duran em uma porrada de composições do mais alto nível. E que era um cara sempre bem informado, com boa leitura e bons conhecimentos gerais. Enfim, era um cara sensível, generoso, um cara “sensa”, como se costumava dizer naqueles anos de chumbo no Brasil.
Uma das marcas mais notáveis do Passarinho era sua obstinação, a incapacidade de aceitar um não com facilidade, o que o levou a se tornar talvez o único publicitário pessoa física que fazia permutas com anunciantes já naquela época, aí incluindo-se os móveis da sala, dos quartos, da cozinha e também o berço do Marcus Vinicius e as roupinhas de bebê, estas através de uma troca de jingle com a Petistil. Esperto aquele Passarinho!
Essa mesma obstinação fez com que ele conseguisse me arrancar da cama numa noite de sábado, logo depois de eu haver chegado de uma viagem de carro com um cliente, durante uma semana, visitando revendedores em Londrina, Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre, onde nos bateu um banzo e decidimos voltar direto dos pagos gaúchos a São Paulo, num total de umas 15 ou 16 horas de estrada, pra me fazer acompanhá-los a um restaurante espanhol na Rua Joly, no Brás, de início cambaleando de sono mas depois me recuperando com os vinhos, as sangrias, os tapas e os frutos do mar.
No nosso apê e no apê do Passarinho costumavam rolar grandes noitadas de carteado, sendo buraco e pôquer os jogos mais comuns, e um dos freqüentadores habituais, além de grande número de publicitários, era o narrador de futebol Peirão de Castro, da TV Gazeta, que me ajudou a transformar a expressão “garfar” em sinônimo de roubar, falando-a em suas transmissões de jogos de futebol (fui eu que inventei isso, sim, assim como criei/adaptei o “falluto” do lunfardo argentino para o nosso fajuto).
Tempos depois do nascimento dos três meninos da Rua Bela Cintra, a mulher do Peirão também deu à luz outro menino, acontecimento que foi noticiado mais ou menos desta maneira pela dupla de narrador e comentarista que estavam transmitindo uma partida de futebol:
- Ô Fulano, acabou de nascer o filho do Peirão! Ao que o narrador, meio distraído, comentou: “Pô, mas naquela idade o Perón ainda tá tendo filho!?”
- Não, Fulano, não é o Perón, é o Peirão, o nosso amigo!
O Passarinho já foi pro andar de cima faz alguns anos, onde certamente deve ter se encontrado com a Dolores Duran e reatado a dupla que tanta coisa boa criou aqui embaixo, mas a gente não liga não porque, mais dia ou menos dia vai se encontrar com eles pra ouvir, se deliciar e aplaudir.
Evoé, Passarinho!

3 comentários:

  1. Ô, Juvenal, que história boa essa...
    Karla

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  2. QUE DELICIA PODER LEMBRAR DE MEU QUERIDO PAI EM PALAVRAS TÃO DOCES COMO AS SUAS.
    ESTE REALMENTE ERA MEU PAI...VC O DESCREVEU MUITO BEM.
    PROVA DO GRANDE AMIGO QUE VC FOI E COM CERTEZA CONTINUA SENDO, PELA SUA EXPLICITA DEMONTRAÇÃO DE CARINHO E ADMIRAÇÃO.
    MUITO OBRIGADA!
    ANDRÉA ABRANTES

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  3. caro Juvenal conheci o Edson (passarinho) na TVT publicidade onde trabalhei com ele durante um tempo que vim da TV Excelsior Canal 9 do depto de divulgaçãoEle era um genio voce o descreveu muito bem. saudações.

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